sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Vida

Ele chorou nos braços dela, e confessou-se capaz de sentir medo.
Ela sorriu, sentindo empatia e alívio:
ele também é humano;
talvez algo que ela diga ou faça possa alcançá-lo.

(essa, para fugir à regra, não é uma citação).

Poema em linha reta

"Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza."

Fernando Pessoa
está em "Poesias", L&PM Pocket, 1997

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Longa viagem sem nos movermos

"Ritmo de pulmões da cidade que dorme. Fora, faz frio.
De repente, um barulho atravessa a janela fechada. Você aperta as unhas em meu braço. Não respiro. Escutamos um barulho de golpes e palavrões e o longo uivo de uma voz humana. Depois, o silêncio.
-Não peso muito?
Nó marinheiro.
Formosuras e dormidezas, mais poderosas que o medo.
Quando entra o sol, pestanejo e espreguiço com quatro braços. Ninguém sabe quem é o dono deste joelho, nem de quem é este cotovelo ou este pé, esta voz que murmura bom dia.
Então o animal de duas cabeças pensa ou diz ou queria:
-Para gente que acorda assim, não pode acontecer nada ruim."

Eduardo Galeano
em "Mulheres" - L&PM - Pocket, 1997

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Domingo, 30 de Janeiro de 1944


"(...) Fiquei no topo da escada enquanto aviões alemães voavam de um lado para o outro, e soube que estava sozinha, que não podia contar com a ajuda dos outros. Meu medo desapareceu. Olhei para o céu e confiei em Deus.
Tenho enorme necessidade de ficar sozinha. Papai percebeu que não estou como sempre, mas não posso dizer a ele o que me incomoda. Só quero gritar: "Me deixem sozinha, me deixem sozinha!"
Quem sabe, talvez chegue um dia em que me deixarão sozinha mais do que eu gostaria!"

Anne Frank
"O Diario de Anne Frank", Editora Record, Edição Integral Autorizada, 1991





terça-feira, 11 de novembro de 2008

"Vingança" de Ana Mello


"A gata brincava com o rato morto. Jogava-o para cima, tocava com a pata, dava pequenas mordidas, como se debochasse da situação da sua vítima.Na cadeira, recostada, com uma taça de vinho nas mãos ela pensava:- Exatamente o que eu quero fazer com aquele canalha."

http://minicontosanamello.blogspot.com/

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Cristiana Guerra

"Rir não é alegria nem tristeza. Gargalhada não é sorriso. É um respiro no meio de tudo, um respiro muito bem pensado. Talvez para tomar fôlego e continuar o caminho."

http://parafrancisco.blogspot.com/

domingo, 9 de novembro de 2008

Distimia

Volta e meia me deparo com a tarefa inglória de tentar explicar aos amigos como os pensamentos sombrios podem ocupar a mente de uma pessoa, sem que consigamos lutar contra isso. Dificilmente sinto que fui compreendida. Por isso, foi consolador (embora também doloroso) encontrar este poema de Gonçalo M. Tavares, do qual reproduzo alguns versos:

"(...)
Às vezes tenho medo, muito medo.
Às vezes sofro.
Às vezes, penso nas pessoas que amo e penso na possibilidade
de as perder.
Às vezes vejo alguém doente e fico incomodado.
Pode não ser um amigo ou um familiar.
Posso estar a vê-lo pela primeira vez.
Mas fico incomodado.
Aquela doença pertence-me.
(...)
Às vezes sinto isso muito,
outras vezes sinto menos.
Quando sinto menos posso preocupar-me como mundo,
brincar com a poesia,
com a filosofia e com as palavras.
Mas quando sinto, deixo de conseguir pensar.
(...)
Que importa o resto?
Onde está o livro importante?
O filme que resolve?
(...)
Estamos sozinho.
Se não estamos, vamos estar.
Os amigos vão-nos deixando, vão-nos deixar.
Vão morrer ou nós vamos morrer.
(...)
Estamos sozinhos. As pessoas que amo vão morrer.
(...)"

Não tem título, exceto pelo número "50.". Está no livro "O Homem ou é Tonto ou é Mulher". Que aliás foi dica do jornalista, compositor, cantor e gente finíssima Beto Só.
http://blogdobetoso.blogspot.com/

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Andrea Doria

"Às vezes parecia
Que de tanto acreditar
Em tudo que achávamos
Tão certo...
Teríamos o mundo inteiro
E até um pouco mais
Faríamos floresta do deserto
E diamantes de pedaços
De vidro...
Mas percebo agora
Que o teu sorriso
Vem diferente
Quase parecendo te ferir...
Não queria te ver assim
Quero a tua força
Como era antes
O que tens é só teu
E de nada vale fugir
E não sentir mais nada...
Às vezes parecia
Que era só improvisar
E o mundo então seria
Um livro aberto...
Até chegar o dia
Em que tentamos ter demais
Vendendo fácil
O que não tinha preço...
Eu sei é tudo sem sentido
Quero ter alguém
Com quem conversar
Alguém que depois
Não use o que eu disse
Contra mim...
Nada mais vai me ferir
É que eu já me acostumei
Com a estrada errada
Que eu segui
E com a minha própria lei...
Tenho o que ficou
E tenho sorte até demais
Como sei que tens também"

Está no disco "Dois" da Legião Urbana. Como emprestei o meu cd e nunca recebi de volta, não pude confirmar a letra no encarte, mas creio que está certa.
E sim, eu era umas das muitas meninas que queria ficar sentada aos pés do Renato Russo ouvindo tudo que ele tivesse para me dizer...